Acossado: uma breve análise do cinema “real”
Acossado é um filme que nos faz lembrar que na arte não existem regras
Por Ivan Cintra
Acossado (À Bout de Souffle, França, 1960) foi o primeiro longa metragem de Jean-Luc Godard, um dos pioneiros do novo cinema francês, inaugurando o movimento da Nouvelle Vague. Com diversas quebras de paradigmas.
Na França, Jean Renoir já quebrava alguma das mais estabelecidas regras do cinema hollywoodiano e ganhava notoriedade. “A Regra do Jogo” (1939) foi um longa que utilizava ao máximo o espaço da imagem para contar histórias simultâneas; cortes eram desnecessários, a pluralidade das situações em um único take era a valorização do relato cinematográfico, sem retalhos, em busca da realidade.
Nos EUA, foi com Orson Wells que a maneira atual de se fazer cinema surgiu. Em “Cidadão Kane” (1941) ângulos de câmera além do convencional substituíam os planos americanos; pela primeira vez o teto aparecia nas cenas internas, dando uma perspectiva maior da realidade; cortes desnecessários foram trocados por planos longos e planos sequência; e o foco ganhava uma nova utilidade linguística.
Em 1960, em “Acossado”, Jean-Luc Godard aplica alguns dos parâmetros do cinema de Renoir e Wells, mas em um novo cinema. Godard encontra uma nova identidade do cinema francês.
O cinema conversa simultaneamente com o literal e com o subjetivo. Um exemplo disso é o uso de cortes: em um filme sem cortes, como Festim Diabólico, o senso de tempo contínuo mantêm a narrativa literal e pode ser usada para dar mais importância a todos os movimentos dos personagens, como se todo detalhe importasse. Em uma montagem fílmica convencional, os cortes ativam o subjetivo, podendo expressar troca de perspectiva e o salto temporal, trazendo maior dinâmica à história. Mas essa diferença não está ligada à expressão de realidade no cinema, um filme com cortes pode ser tão real quanto um filme contínuo.
A sensação de realidade no cinema está diretamente ligada à forma com que ele foi filmado e menos relacionado com sua narrativa, seja realista ou fantástica. Por exemplo, o espectador pode achar “Cloverfield” (2008) muito mais real do que “…E o Vento Levou” (1939); a forma dos dois filmes é diferente. “Cloverfield”, apesar de fantasioso, causa a sensação de realismo pela cinematografia e montagem, enquanto o clássico “…E o Vento Levou” remonta um espetáculo teatral.
No filme de Godard pouco importa se o roteiro é realista, pois a forma é. O jeito do personagem Michel roubar um carro ou de atirar com um revolver é pouco real, mas a forma com que a câmera trata a cena compensa esse desprendimento. “Acossado” é um filme de ficção que consegue passar a ideia de documentário, sem se comprometer 100% a isso.
“Acossado” conta a história de Michel Poiccard, um ladrão de carros anarquista que, após matar um policial, foge para Paris para encontrar-se com sua amiga americana Patricia. Ao se envolver romanticamente com a jovem, Michel se esquece que é um foragido da policia e começa a cometer diversos delitos. Enquanto isso, Patricia está presa em um dilema pessoal.
O roteiro de Godard, baseado na história de François Truffaut, não foi ao menos acabado antes do inicio das filmagens, que levaram apenas quatro semanas. Não havia uma grande equipe cinematográfica, Godard portava câmeras pequenas e de fácil manuseio, a maioria das cenas foram improvisadas nos locais que a equipe tinha acesso, nada tinha autorização. “Acossado”, e a maioria dos filmes da Nouvelle Vague, foi um cinema feito por cinéfilos; estudantes de cinema ou entusiastas, que entendiam o que era um bom filme, mas não tinham os recursos para produções hollywoodianas.
A maior inspiração de Godard foi o cinema americano, ele trouxe para o o cinema francês o que Orson Wells e John Ford faziam nos EUA. A Nouvelle Vague não foi um movimento de afastamento do clássico hollywoodiano, mas de apropriação com novos horizontes. Talvez seja por esse fato que o movimento foi de forte inspiração para o cinema hollywoodiano dos anos 60, 70 e adiante. Godard abriu as portas para Scorsese e Tarantino.
O longa abre com Michel (Jean-Paul Belmondo) de chapéu e terno, como um gangster dos clássicos americanos, fumando um charuto e fazendo o movimento do dedo nos lábios – marca de Humphrey Bogart. O personagem é uma paródia do anti-herói americano.
Não somente a inspiração no cinema de máfia, “Acossado” tem a mesma estrutura fílmica de um longa americano do gênero, a diferença está na estrutura fotográfica. Duas técnicas, talvez diretamente opostas, estão presentes no longa; o long take (plano longo), e o jump cut (corte em pulo).
O long take é usado em cenas pontuais, muitas vezes ao apresentar um personagem novo ou para valorizar um movimento de deslocação de um personagem. Um uso notável do long take é durante a cena no final do filme, em que Michel foge da policia, com um buraco de bala nas costas. A escolha do long take é claramente para suspender a ação e causar inquietamento no espectador, que anseia saber o que vai acontecer com o protagonista.
O jump cut é a principal técnica em “Acossado”: é um corte brusco em uma cena, removendo parte da tomada, dando a ideia de avanço temporal. Essa foi uma decisão tomada ao acaso na pós produção, Godard achou o filme longo demais, mas ao invés de cortar cenas inteiras ele cortou parte dos diálogos, criando os jump cuts. A técnica deixa o filme muito mais dinâmico e altera todo o ritmo da história.
A sensação de realidade documental é passada pela própria produção rústica do filme, a câmera treme, os cortes são brutos e os ângulos são os mesmos utilizados na fotografia de um telejornal. O fato do filme ter sido gravado em cenário real, com pessoas reais ao fundo (não são figurantes), faz com que Acossado tenha uma construção de mundo já pronta, os atores reagem ao mundo real, a história não é criada no roteiro, mas sim na rua – pelo diretor e pelos atores.
Michel Poiccard pode ser o personagem com maior tempo de tela, mas é Patricia que tem a maior importância na trama, é nela que está toda a discussão quanto vida e morte; amor e vida pessoal; e o lugar da mulher na sociedade moderna. Ao longo do filme, todos os questionamentos que a personagem tem são ignorados por Michel, que parece só se importar com o corpo da personagem.
Patrícia questiona o papel de uma mulher na sociedade. Enquanto sua carreira como jornalista avança e ela começa a deslumbrar um futuro estudando na Sorbone, Michel representa seu lado carnal e submisso. Ele quer que Patrícia desista de tudo para viver um amor impossível e criminoso. Esse dilema leva a decisão final da personagem, de trair a confiança de Michel, o denunciando para a policia. Ela escolhe seguir com sua vida e com sua carreira, sem se depender do amor de um homem.
“Acossado” é talvez um dos filmes mais influentes da história, ele ensina que na arte não há regras e que um bom filme não é aquele que se preocupa com padrões. Godard é, antes de um cineasta, um cinéfilo que se inspirava no cinema americano. É um cinema que eleva a indústria a um novo patamar, em que filmes experimentais têm importância real e que podem mudar a história do audiovisual de forma universal.
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