Bruce Dickinson surpreende em “The Mandrake Project”
Por Luís Schuh Bocatios | Foto: Divulgação
Após quase vinte anos de espera, finalmente chegou às lojas e aos serviços de streaming o álbum The Mandrake Project, primeiro lançamento de Bruce Dickinson desde Tyranny Of Souls, de 2005.
O álbum vem acompanhado de uma história em quadrinhos idealizada por Dickinson, roteirizada por Tony Lee e ilustrada por Staz Johnson. Isso fez com que muitos pensassem que se trata de um disco conceitual, mas o vocalista confirmou que esse não é o caso. Mesmo que algumas músicas tenham a ver com a HQ, o disco não conta essa história completa, portanto não preenche os pré-requisitos para ser um trabalho conceitual.
O time reunido por Bruce Dickinson traz novamente o produtor e guitarrista Roy Z, braço direito do vocalista desde os anos 90. Nesse disco, ele também assume o baixo e assina a co-autoria de seis das dez faixas. A bateria ficou por conta de Dave Moreno, que já havia tocado em Tyranny Of Souls, e os teclados foram tocados por Mistheria. O guitarrista Chris Declerq performou um solo de guitarra em Rain On The Graves, e Sergio Cuadros tocou os instrumentos de sopro em Eternity Has Failed.
Em termos musicais, o álbum surpreende todos aqueles que esperavam um disco de heavy metal puro, que seguisse a linha dos três últimos lançamentos de Bruce: Accident Of Birth, de 1997, The Chemical Wedding, de 1998, e Tyranny Of Souls.
Os dois singles lançados, Afterglow Of Ragnarok e Rain On The Graves, davam a impressão de que seria um disco básico e pouco ousado. No entanto, poucas percepções foram tão erradas quanto essa. Mesmo não sendo o melhor trabalho da vida de Dickinson, provavelmente trata-se do retrato mais adequado de sua ecleticidade musical.
É claro que há muito heavy metal no disco, mas também há momentos que soam inspirados por artistas como David Bowie, Scott Walker, Ennio Morricone e até influências mais contemporâneas, como Ghost e The Last Shadow Puppets. Essa mistura gera o disco mais diverso que o vocalista lançou em toda a sua carreira, e tem momentos surpreendentes mesmo para aqueles que conhecem a versatilidade de influências e gêneros abordados por Dickinson em sua discografia.
Faixa a faixa
A música de abertura do trabalho foi também seu primeiro single: Afterglow Of Ragnarok é uma das músicas mais comuns do trabalho, e traz sinais de cansaço na voz de Dickinson, que, mesmo com uma voz espetacular já aos 65 anos, não consegue mais atingir todas as notas, como conseguia há não tanto tempo atrás. O principal atrativo da faixa é seu excelente e pesado riff de guitarra.
Em seguida, Many Doors To Hell tem um riff de hard-rock e um órgão que remetem ao trabalho do Ghost, especialmente músicas como Square Hammer e Dance Macabre. O fortíssimo refrão vende a faixa como uma das mais divertidas do disco, e traz o vocalista com uma voz bem mais encorpada do que na faixa de abertura.
A terceira faixa e segundo single, Rain On The Graves, segue a linha da primeira, mas é bem mais inspirada. Os versos trazem um vocal falado, e as estrofes são separadas por um riff sensacional, que remete às escalas do blues-rock e, a cada vez que é repetido, tem uma camada a mais de guitarras. O refrão é simples, mas efetivo, e o solo de guitarra traz duas guitarras fazendo coisas diferentes, e a maneira com que isso funciona é surpreendentemente ótima.
Resurrection Men é o primeiro momento genuinamente surpreendente do disco. Ela é, para The Mandrake Project, o que Darkside Of Aquarius é para Accident Of Birth e Book Of Thel para The Chemical Wedding. A introdução da faixa apresenta guitarras que trazem timbre e escalas similares às utilizadas pelo lendário compositor Ennio Morricone em trilhas de faroestes como Era Uma Vez no Oeste e Três Homens em Conflito. A mistura gera uma similaridade curiosíssima com o trabalho do duo The Last Shadow Puppets.
A relação com as trilhas sonoras de cinema não para quando entram as guitarras distorcidas, pois um dos riffs antes do início do vocal lembra a progressão harmônica do tema dos filmes do 007. Assim que o riff termina, começa uma performance matadora e pouco usual de Bruce Dickinson, em que as estrofes são separadas por licks de guitarra que geralmente seriam executados com um slide. Isso lembra o trabalho de Zakk Wylde na música No More Tears, de Ozzy Osbourne. Na música em questão, Wylde intercala uma frase com slide e outra sem.
O refrão repete a harmonia da introdução, mas com guitarras distorcidas e uma boa linha vocal. Logo em seguida, se inicia o riff mais pesado do álbum, que lembra o doom metal e poderia perfeitamente figurar na obra-prima Master Of Reality, do Black Sabbath. Dickinson continua brilhando no vocal, e o baixo, ausente durante quase toda essa seção da música, chama a atenção sempre que aparece, com um timbre ultradistorcido. Após um curto interlúdio, a brilhante faixa volta para sua introdução e, em seguida, para o refrão, que fecha com chave de ouro a melhor e mais ousada música de The Mandrake Project.
A próxima canção, Fingers In The Wounds, é uma das composições mais simples do álbum, mas a performance de Bruce Dickinson, que intercala momentos calmos e agressivos, e uma instrumentação riquíssima, com pianos, violões e instrumentos de corda, vendem a faixa.
Passando da metade do disco, Eternity Has Failed poderia perfeitamente estar em um disco do Iron Maiden, especificamente The Book Of Souls. Brincadeiras à parte, a música foi surrupiada e “maidenizada” por Steve Harris para o espetacular álbum de 2015 e renomeada para If Eternity Should Fail, mas também aparece no trabalho novo de Dickinson, em uma versão mais orgânica e agressiva.
O sintetizador da introdução é substituído por uma flauta peruana, e toda a instrumentação tem uma pegada mais crua e um andamento mais lento, o que gera uma música consideravelmente diferente da maravilhosa If Eternity Should Fail.
A referência a músicas já lançadas continua na faixa seguinte, Mistress Of Mercy, que tem um riff praticamente igual ao de Freak, abertura do disco Accident Of Birth. Seu pré-refrão também remete a outro momento do álbum de 1997: a faixa-título. Momento mais heavy metal do disco, a faixa poderia tranquilamente estar em qualquer um dos três últimos discos de Bruce Dickinson. Para os fãs que esperavam um álbum de heavy metal clássico, certamente essa boa música estará entre as melhores do trabalho.
Face In The Mirror dá sequência ao disco trazendo uma influência de David Bowie, especialmente na voz duplicada do refrão. A canção traz a primeira gravação de um solo de guitarra feito por Bruce Dickinson, que tecnicamente beira o amadorismo, mas tem um senso melódico mais do que aceitável. Ela se distancia das outras baladas da carreira solo de Dickinson porque não explode no refrão; a linha vocal continua baixa, frustrando expectativas de fãs que esperam algo na linha de Tears Of The Dragon ou Man Of Sorrows.
A faixa seguinte continua o desfile de influência surpreendentes em um disco de Bruce Dickinson. Shadow Of The Gods começa como se fosse uma música de Scott Walker: é uma composição belíssima, tem um arranjo de cordas certeiro e traz uma performance memorável de Bruce Dickinson, que se estende ao épico refrão, em que Bruce solta toda sua potência vocal.
Após um breve pós-refrão, inicia-se outro momento do disco que lembra Black Sabbath – dessa vez, uma canção específica: Megalomania, do disco Sabotage. Essa seção da música traz um refrão extremamente agressivo, com vozes sobrepostas de uma maneira muito moderna. Em seguida, começa uma seção melódica com guitarras harmonizadas, em que Bruce aborda outra faceta de sua voz e comprova que essa é sua melhor performance vocal não apenas nesse disco, mas em um bom tempo, mesmo quando comparada a seu trabalho no Maiden.
A última música do disco é, também, a mais longa: Sonata se inicia com uma batida eletrônica que lembra o disco Adore, dos Smashing Pumpkins, e até algumas coisas do Depeche Mode. A melodia vocal soturna guia a faixa até o primeiro refrão, em que a bateria performa de maneira totalmente diferente do resto do disco, usando pratos para condução.
Em seguida, a estrutura verso-refrão é repetida, e, após o segundo refrão, a faixa se torna cada vez mais intensa, com um Bruce vigoroso como poucas outras vezes foi visto em toda sua carreira. O vocalista passa uma emoção enorme em sua voz, e carrega a faixa durante seus quase dez minutos de duração.
Difícil de comentar por sua característica complexa, que pode ser recebida de formas completamente diferentes por cada ouvinte, a faixa encerra o álbum de maneira apoteótica e deixa o ouvinte perplexo, esperando ansiosamente para saber se haverá novas adições ao catálogo de Bruce Dickinson, e se seus possíveis próximos lançamentos serão tão ricos quanto este The Mandrake Project.
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