“Cycles Of Pain” confirma a magia do segundo disco de cada formação do Angra

Por Luís S. Bocatios | Fotos: Divulgação | Metal Revolution | Roadie Crew

Com pouco mais de trinta anos de carreira, o Angra está apenas no terceiro momento estável de sua trajetória. O primeiro foi com André Matos, Luís Mariutti e Ricardo Confessori, e o segundo com Edu Falaschi, Aquiles Priester e Felipe Andreoli. Mesmo entre inúmeros atritos internos, essas formações se mantiveram intactas por três discos em sequência.

Após a saída de Aquiles da banda, em 2007, iniciou-se uma sucessão de mudanças que parecia não ter fim: Confessori voltou em 2009 e saiu em 2013, deixando espaço para Bruno Valverde; Falaschi saiu em 2011, dando lugar ao italiano Fabio Lione; e Kiko Loureiro deixou o grupo em 2015, quando se juntou ao Megadeth.

Esse caos chegou ao fim com a entrada de Marcelo Barbosa no lugar de Loureiro, e, principalmente, com o lançamento de Omni (2018), melhor disco do Angra desde Temple Of Shadows (2004). Mesmo assim, Barbosa ainda não estava tão solto na banda, e Lione não mostrava totalmente sua enorme versatilidade.

Esse porém só poderia ser resolvido caso o grupo lançasse um outro disco com a mesma formação, o que não acontecia desde Aurora Consurgens (2006). Os anos de turnê, a experiência em Omni e mais tempo de estúdio fizeram com que os integrantes adquirissem uma afinidade pessoal e musical muito maior do que vinha sendo a regra na banda, com as inúmeras trocas de integrantes.

O resultado disso é ouvido claramente em Cycles Of Pain. Mesmo que Rafael Bittencourt continue coordenando a parte criativa, tendo créditos como letrista e compositor em quase todas as músicas, o peso de ter que tirar milhares de ideias da cartola para sustentar um disco já não cai mais totalmente sobre ele. Felipe Andreoli, após vinte anos de Angra, se consolida como a segunda maior força composicional da banda. Muito da pegada progressiva que domina o disco vem da paixão do baixista pelo Metal Progressivo, especialmente pelo Dream Theater.

Outro fã de Dream Theater que aparece muito mais confiante no álbum é Marcelo Barbosa, que tem créditos em apenas cinco músicas, mas parece muito mais confortável em seus solos, entregando um trabalho bastante superior à boa participação que teve em Omni. Bruno Valverde, por sua vez, oferece o melhor e mais criativo trabalho de bateria em um disco do Angra desde Temple Of Shadows. O baterista busca fugir do óbvio em todos os momentos, e sua impressionante técnica deixa os ouvintes de queixo caído.

Mas a evolução mais clara foi a de Fabio Lione. Mesmo que sua performance em Omni já tenha sido excelente, a banda ainda não havia se aproveitado de tudo que o vocalista pode oferecer. Desta vez, Lione teve a liberdade de compor praticamente todas as melodias vocais do disco, e isso fez com que ele maximizasse os pontos mais fortes de sua voz: a potência e a versatilidade. Aqui, ele canta em várias regiões, indo do grave ao agudo e do operístico ao rasgado de forma brilhante, entregando uma das melhores performances vocais de qualquer disco do Angra, olhando de frente para o gênio André Matos e o excelente Edu Falaschi.

Quem assina a produção é o alemão Dennis Ward, que trabalhou com a banda em Rebirth (2001), Temple Of Shadows e Aurora Consurgens. Seu trabalho é digno de aplausos: ao lado de Temple Of Shadows, Cycles Of Pain tem o melhor som da carreira do Angra. Em um cenário em que as bandas de Metal querem soar cada vez mais pesadas, abandonando a importância do timbre, o produtor entende que uma coisa não anula a outra, e que o peso não deve se sobrepor à musicalidade.

O baixo de Andreoli, que algumas vezes era sufocado pelas guitarras, nunca foi tão bem capturado e mixado, e, muito por causa disso, acaba se tornando um dos destaques do álbum. Na bateria, o produtor não chega a igualar o que fez em Temple Of Shadows, que traz um dos melhores sons de bateria da história do Metal, mas se adapta ao estilo de Bruno Valverde e dá ao baterista totais condições de brilhar.

No fim das contas, Cycles Of Pain comprova a magia do segundo disco de cada fase do Angra: Holy Land, segundo álbum da primeira formação (primeiro gravado por Confessori, mas tudo bem), é um dos trabalhos mais importantes da história do Metal sulamericano, por juntar os ritmos brasileiros com o Power Metal e o Rock Progressivo. É quase unânime entre os fãs old-school da banda como seu melhor disco, e conta com alguns dos maiores hits do grupo, como Nothing To Say e Make Believe, e algumas das melhores músicas do Metal brasileiro, como Carolina IV e Holy Land.

Temple Of Shadows, segundo disco da Nova Era do Angra, une basicamente todas as vertentes de fãs da banda: para os fãs do Metal Espadinha, há faixas excelentes como Spread Your Fire e The Temple Of Hate; para os fãs da união do Heavy Metal com a brasilidade, a expectativa é cumprida pelas belíssimas Sprouts Of Time e Late Redemption – essa última, com a lindíssima participação de Milton Nascimento; e para os fãs da vertente mais progressiva, há tanto músicas que se inspiram no Rock Progressivo, como as brilhantes The Shadow Hunter e Morning Star, quanto no Metal Progressivo, como Angels and Demons e Waiting Silence.

Mesmo que Cycles Of Pain não consiga se igualar a essas duas obras-primas (e nem precisa), o disco une todos os elementos que fizeram o Angra ser tão amado por seus fãs. Tudo o que se pode esperar de um álbum da banda está aqui, e o nível das composições é excelente, a ponto de manter viva a mística do segundo álbum de cada formação do grupo, mesmo contraposto a dois dos melhores trabalhos do Metal mundial nos últimos trinta anos.

Faixa a Faixa

Assim como em todos os discos do Angra, a primeira faixa é uma vinheta que prepara para a música de abertura: Cyclus Doloris introduz o clima sombrio do disco com seus coros e órgãos, e entrega para a épica Ride Into The Storm

Ao lado de Nothing To Say, é uma das músicas mais pesadas que já abriu um disco da banda, já que quase todas são canções melódicas de Power Metal, como Carry On e Nova Era. Também há elementos de Power Metal, como o excelente refrão, mas a pegada é muito mais agressiva, e as passagens progressivas, de tremendo virtuosismo, adicionam uma complexidade além do comum para faixas de abertura do Angra. Já dá o tom pesado e épico que permeará o disco inteiro.

A segunda faixa, Dead Man On Display, possivelmente é a mais pesada que a banda já gravou. Pensada para ser a Angels and Demons do disco, a música cumpre esse papel muito bem, guardadas as devidas proporções: mesmo que sua introdução não seja tão empolgante quanto a da música do Temple Of Shadows, os versos trazem uma interação fantástica entre todos os instrumentos, e contam com surpresas instrumentais incríveis, que deixam a música ainda mais pesada.

O maravilhoso refrão parece ter saído diretamente do álbum de 2004, com clima e ideias melódicas similares. O solo é ótimo, mas o interlúdio que vem a seguir, com um mini-solo de bateria entregando para as excelentes guitarras harmonizadas, é ainda melhor. A pequena parte acústica é interessante por aparentemente estar em um tom diferente do refrão, que volta para encerrar essa excelente música.

Em seguida, temos as duas partes de Tide Of Changes: a primeira traz o baixo de Felipe Andreoli fazendo uma base de tremendo bom gosto para a voz de Fabio Lione; a segunda começa de forma explosiva, com a bateria chamando o resto da banda. Daí, se desenvolve uma música de estrutura simples, com um excelente riff de guitarra e uma bateria econômica de Bruno Valverde, que sinaliza ao Heavy Metal clássico. Mas a estrela da faixa é mesmo Felipe Andreoli, que emprega ao baixo papéis diferentes ao longo da música: no início e no refrão, ele segue a guitarra; no final da introdução e nos versos, preenche os espaços sonoros; na parte mais progressiva, conduz a canção com um riff espetacular e altamente técnico.

A composição é belíssima e a letra fala sobre as mudanças que ocorrem em nossas vidas e como devemos nos utilizar delas para crescermos e ficarmos mais fortes (Rafael sabe bem do que está falando). Em um momento mais calmo, há uma homenagem à clássica Carolina IV, do Holy Land, e, em sequência, tem início a parte progressiva, que entrega para um solo de guitarra belíssimo de Marcelo Barbosa. Um ponto negativo da faixa é que pode-se dizer que seu refrão, apesar de ótimo, parece pertencer a uma outra música, que poderia ser de qualquer banda de Rock do início dos anos 2000.

Uma das faixas mais esperadas do disco era Vida Seca, que traz a participação especial do cantor e compositor Lenine. A canção começa com uma levada no violão que lembra Trilhos Urbanos, de Caetano Veloso, e uma belíssima melodia interpretada com maestria por Lenine, que canta uma vida sofrida no nordeste do Brasil. A letra, aliás, tem uma carga política e fala sobre a injustiça do mito da meritocracia, que ignora a falta de equidade de condições, especialmente em um país tão desigual quanto o Brasil.

Após a parte de Lenine, começa um riff pesado, sobre o qual Lione repete a melodia da introdução. O interlúdio entre essa parte e o refrão é um dos melhores e mais pesados riffs do disco, e o grandioso refrão mantém a qualidade da música nas alturas. Após isso, se inicia um riff fantástico e sombrio, que desemboca em bons solos de guitarra, e devolve para o refrão fechar a música com chave de ouro. É uma das melhores canções da fase Lione, quiçá da carreira do Angra, e tem tudo para se tornar presença frequente nas apresentações ao vivo da banda.

O Power Metal toma as rédeas do disco com Gods Of The World, que fala sobre os poderosos que já haviam sido citados em Vida Seca. Com uma estrutura simples que não surpreende, a música é uma das menos interessantes do disco. Em termos instrumentais, ela é muito boa, traz bons solos, uma performance competente de todos e uma boa melodia vocal, mas o refrão é genérico demais, o que faz com que a faixa não se destaque em nenhum sentido.

A música que dá nome ao disco figura entre as mais emocionantes já gravadas pela banda. Cycles Of Pain, não por coincidência, fala sobre dor, depressão e redenção. Com um começo suave – carregado apenas por piano, voz e uma belíssima linha de baixo tocada em um fretless – , a faixa cresce cada vez mais, gerando momentos catárticos e comoventes. No solo, Marcelo Barbosa – principal compositor da canção – demonstra um feeling impecável que, aliado a uma técnica do mais alto nível, gera um solo lindíssimo, que figura entre os melhores da fase recente da banda.

Fabio Lione também entrega uma das melhores performances de sua carreira. Alternando entre uma suavidade fundamental para a dramaticidade da canção e uma intensidade que convence o ouvinte de tudo que está sendo cantado, o vocalista obriga até as maiores viúvas de Matos e Falaschi a admitirem que ele não deve nada aos seus antecessores.

A faixa seguinte é uma das maiores pancadarias da carreira do Angra. Brazuca e progressiva, Faithless Sanctuary é uma das músicas tecnicamente mais complexas que a banda já gravou. Descendente direta de clássicos como Never Understand e Hunters and Prey, a faixa é mais uma união perfeita do baião com o Heavy Metal. Isso se dá tanto por elementos mais óbvios, como a levada de bateria, a linha de baixo e a presença de um triângulo no refrão, quanto por detalhes que se ouvem de pouco em pouco, como as guitarras harmonizadas.

Em alguns momentos, a brasilidade deixa de ser tão clara, e um peso enorme toma conta da faixa. Todos os riffs são excelentes – um deles lembra Even Flow, do Pearl Jam –, assim como os solos – especialmente o de Rafael Bittencourt, que está com a técnica mais apurada a cada dia. O único ponto negativo é que a melodia vocal está entre as menos interessantes do álbum, mesmo que a performance de Lione seja excelente, e, em alguns momentos, pareça bastante inspirada em Bruce Dickinson. Os backing vocals que surgem perto do final da faixa são incríveis.

Mas a estrela dessa música é o baterista Bruno Valverde. Ele demonstra uma técnica impressionante, com pedais duplos extremamente rápidos, e um bom gosto que, na minha visão, faltava em algumas de suas participações nos discos anteriores. A criatividade de Valverde também está em alta, visto que ele fornece levadas surpreendentes e, especialmente, algumas viradas totalmente inesperadas, que pegam o ouvinte de surpresa e funcionam maravilhosamente bem. De fato, é um trabalho que se aproxima do brilhantismo alcançado por Ricardo Confessori em Holy Land e por Aquiles Priester em Temple Of Shadows.

Here In The Now já está na internet faz algum tempo, já que foi uma das duas músicas inéditas que a banda apresentou na gravação de seu DVD acústico em Curitiba, no mês de agosto. Sobra das sessões de Omni – época em que era chamada de Balada Barbosa, por ser uma composição de Marcelo Barbosa –, a música conta com a participação da cantora Vanessa Moreno, que oferece belíssimos vocalizes na introdução, que, junto ao dedilhado que a acompanha, remete muito ao trabalho de Milton Nascimento.

Trata-se da faixa mais pop do disco, que, com alguns ajustes no arranjo, poderia ser gravada por bandas como Kid Abelha ou Capital Inicial. Isso é um enorme elogio, já que, em meio a músicas tão pesadas, a canção surge como um alívio, graças à sua melodia esperançosa e sua letra otimista, especialmente no maravilhoso refrão.

Nas faixas extras do álbum, há uma versão cantada apenas por Vanessa Moreno, que, com sua linda e suave voz, contribui para que a música seja tão palatável e tenha a possibilidade de agradar um público muito além do que a banda costuma atingir. A versão cantada por Lione também é ótima, mas a voz de Vanessa casou perfeitamente com essa canção.

A penúltima faixa é Generation Warriors, que vai levar ao delírio os fãs de Metal Espadinha que, a essa altura do disco, devem estar nervosos pela falta de músicas nos moldes de Nova Era e The Temple Of Hate. Após uma introdução que lembra Metallica, entram as guitarras harmonizadas que fazem os fã do Angra se sentirem em casa.

Os versos se desenvolvem da maneira mais previsível possível (o que não é ruim), remetendo a faixas como Running Alone e Speed, e o refrão parece feito sob medida para ser berrado a plenos pulmões nos shows. A parte mais interessante da música é, disparadamente, o riff meio Death Metal entre o primeiro e o segundo solo, que lembra War Horns, música lançada no Omni.

Encerrando o disco, temos Tears Of Blood, uma das faixas mais sombrias e teatrais da carreira do Angra. O dueto entre Fabio Lione e Amanda Sommerville – que também foi apresentado na gravação do Acústico – constrói um diálogo entre um assassino e o fantasma de sua amada, a quem matou. Em todos os discos da banda, a única participação melhor que a de Sommerville é a de Milton Nascimento em Late Redemption.

A construção dramática da faixa é brilhante e envolve todos os instrumentos, principalmente as guitarras, e um arranjo de cordas incrivelmente soturno. O primeiro verso traz uma explanação de Lione, que é respondida por Sommerville no segundo. No espetacular refrão, os dois cantam juntos: Lione explorando sua voz operística, e Sommerville com um belting lindíssimo. Após isso, entra um belíssimo solo de Rafael Bittencourt, e o clímax da faixa repete a dinâmica do refrão, mas com uma melodia ainda mais poderosa e uma letra que clama: “Por favor, liberte minha alma/toda essa dor terrível não vai embora”.

Na edição japonesa do disco, há uma versão bônus em que a música é tocada em Speed Metal, com a participação de Kiko Loureiro e Fernanda Lira, vocalista da Crypta. O solo de Kiko é excelente, como de costume, e o dueto entre Lira e Lione é bem menos dramático e mais visceral do que o original. Como é uma composição magistral, funciona também nessa roupagem diferente, mas perde a dramaticidade que, no fim das contas, é o principal charme da canção.

Mesmo que alguns digam que o lançamento não traz nenhuma novidade, ele entrega absolutamente tudo o que um fã da banda pode esperar após mais de trinta anos de estrada. A essa altura do campeonato, o que vale mais: forçar mudanças que ninguém pediu ou fazer o que a banda faz de melhor, sempre buscando se desafiar e se aperfeiçoar?

Se você espera uma grande surpresa, talvez seja melhor nem escutar Cycles Of Pain. Caso seja um fã do Angra e espere um disco com tudo o que te fez amar a banda, aperte os cintos e se prepare para um dos melhores trabalhos de uma das carreiras mais ricas da história do Metal brasileiro.

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